Por Bàbá Asògún Olúmolà (Ulisses Manaia)
(Texto publicado na revista “Candomblés nº 1”, – da Editora Minuano – Fevereiro de 2011)
KÒ SÍ EWÉ, KÒ SÍ ÒRÌSÀ! Expressão no idioma Yorùbá que quer dizer: “Se não há folhas, não há Òrìsà!” Esta expressão dá ao leitor o entendimento da importância das folhas dentro dos rituais de origem africana, no entanto, queremos aqui ampliar este conceito, traduzindo por folhas os vegetais de um modo geral, incluindo além de suas folhas, seus frutos, sementes, e até mesmo seu caule; e traduzindo por Òrìsà, os diversos usos “mágicos” desses vegetais.
Na caminhada evolutiva do homem, que hoje a maioria dos estudiosos acredita ter começado no continente africano, ele se valeu da observação da natureza para o desenvolvimento de habilidades que até então ele não possuía e, naquele continente onde “tudo começou”, sociedades ditas “animistas” ou “tradicionais” continuam até hoje vivendo em harmonia com a natureza, dela tirando ensinamentos para a sua vida social. Animistas porque acreditam que “toda manifestação viva pressupõe a presença de uma força vital, determinante do ideal de viver”, e que utilizando práticas específicas esta “força” poderá ser utilizada em seu favor! E dentro deste conceito os vegetais representam um grande potencial de possibilidades.
“Se para a medicina ocidental o conhecimento do nome científico das plantas usadas e suas características farmacológicas é o principal, para os Yorùbá o conhecimento dos ofò, encantações pronunciadas no momento da preparação das receitas e transmitidas oralmente, é o que é essencial. Neles encontramos a definição da ação esperada de cada uma das plantas que entram na receita.”(Ewé,Pierre Verger, 1995).
Bom, diante dessa referência concluímos que as plantas e seus derivados não são utilizados aleatoriamente, visam atender necessidades específicas, ou seja, qual o resultado esperado? Ou ainda: utilizar a folha certa no momento certo! Vimos também que a ação esperada dessas folhas está ligada ao que vai ser dito no momento de sua utilização, o ofò, que nada mais é do que a utilização da palavra enquanto transmissora de àse. Verger diz ainda que à primeira vista é difícil perceber nas diversas “receitas”, que tem como ingredientes elementos vegetais, qual é a parte “mágica”, ou seja, aquela que o efeito vai se dar pelo àse nela contido, e quais as virtudes testadas experimentalmente dessas plantas, ou seja, ele diz com isso que muitas dessas plantas já tiveram suas propriedades farmacológicas comprovadas.
Dentro desse contexto quero destacar o trecho de uma canção brasileira, interpretada pela célebre cantora baiana Maria Bethânia:
“Salve as folhas brasileiras! Salvem as folhas para mim! Se me der a folha certa, e eu cantar como aprendi, vou livrar a Terra inteira de tudo que é ruim!Eu sou o dono da terra, eu sou o caboclo daqui! Eu sou Tupinambá que vigia, eu sou o dono daqui!” (meu grifo).
O que me chamou atenção nessa composição, e que destaco para o leitor, é que ela ilustra o trecho acima de Verger, e mais ainda, a utilização das folhas está associada a um dos grupos indígenas brasileiros, sugerindo que esses nativos, primeiros habitantes do nosso País, também conheciam essa prática!
Ainda de Pierre Verger:
“Na língua Yorùbá, freqüentemente existe uma relação direta entre os nomes das plantas e suas qualidades, e seria importante saber se receberam tais nomes devido às suas virtudes ou se devido a seus
nomes, determinadas características foram a elas atribuídas.” (meu grifo).
Como ilustração, transcrevemos o trecho de uma preparação Yorùbá para obtenção de dinheiro:
PÈRÈGÚN NÍ Í PE IRÚNMOLÈ L’ÁT’ÒDE ÒRUN W’ÁYÉ!
(É Pèrègún que chama os espíritos do além para a terra!)
PÈRÈGÚN WÁ LO RÈÉ PE AJÉ TÈMI WÁ L’ÁT’ÒDE ÒRUN!
(Pèrègún, agora vá e chame minhas riquezas do além!)
Nesta preparação encontramos referência a uma folha, conhecida pela maioria de nós: o Pèrègún, cujo nome é a contração do verbo “PÈ”, que significa chamar, com a palavra “EGÚN”, que significa espírito, ancestral, etc. Percebe-se então que esta folha tem a finalidade de “chamar (invocar) espíritos”, e que a própria pronúncia de seu nome já funciona como um ofò! No caso da receita acima, a sabedoria daqueles nossos ancestrais yorubanos que a elaboraram fez esse trocadilho: se Pèrègún pode chamar espíritos, pode chamar a riqueza! Certa vez ouvi de meu “bàbá” que o negro yorubano tem sobre nós a vantagem do uso corrente do idioma, enquanto nós aqui no Brasil ficamos presos a textos prontos, que nos foram transmitidos ao longo do tempo.
Para algumas pessoas, principalmente para aquelas que não estão ligadas aos cultos de matriz africana, pode parecer um tanto “primitivo” pensar dessa maneira, digo, esperar resultados a partir da utilização de certas plantas, de sementes, etc., enfim de elementos da natureza, aparentemente inanimados. No entanto, repetimos, existe por traz da utilização desses elementos uma questão cultural. Eles se utilizam desses elementos da natureza acreditando que eles expressam as suas necessidades perante o “Criador”, o destino final de seus pedidos:
“…Uma composição mágica parece ser considerada como uma coleção de coisas materiais, às quais é dado um valor simbólico; juntas constituem uma mensagem…” (Ewé, Pierre Verger, 1995)
Entre os Yorùbá, os ofò são frases curtas nas quais muito freqüentemente o “verbo” que define a acão esperada, chamado de “verbo atuante”, é uma das sílabas do nome da planta ou do ingrediente empregado. No entanto, o elo entre o nome da folha e a ação esperada, invocada através do ofò, não se limita apenas ao verbo, mas pode aparecer em uma frase curta ou longa, nesse caso estabelecendo uma relação simbólica entre algumas “características naturais” daquela planta a as “necessidades” do homem.
Vejamos alguns exemplos:
ÀT’ÒJÒ ÀTEÈRÙN KÌ Í RE TÈTÈ
(Tètè nunca está doente, nem na estação chuvosa nem na seca)
Este ofò faz referência a uma folha conhecida popularmente por Bredo ou Caruru de porco, e cujo nome Yorùbá é Tètè. É uma folha facilmente encontrada, tanto no meio urbano, nas margens de calçadas, como no meio rural, e confesso que antes de conhecer o seu valor ritual, passava-me despercebida, assim com muitas folhas que não conhecemos! Percebemos pela tradução que é uma planta resistente às variações da natureza, permanecendo sempre saudável, e não é este tipo de força que queremos para nossa vida?
OJÚ ORÓ NI Ó N’LÉKÈ OMI, TÈMI Ó L’Á LÉ
(Ojú oró flutua na água, eu também ficarei por cima)
Ojú oró é conhecida popularmente por Erva de Santa Luzia, é uma planta aquática, encontrada em rios ou lagoas. Percebemos que nesse ofò evoca-se o poder dessa planta de conseguir manter-se sempre por cima da água!
Em território Yorùbá, na preparação dos trabalhos ligados à obtenção de todo tipo de sorte, ou para afastar algum mal, esses vegetais são pilados e misturados ao sabão africano Ose (oxé) Dudu, com o qual toma-se banho, ou então são torrados, até a obtenção de um pó, que poderá ser misturado à comida, a bebidas destiladas, ou até mesmo esfregado em incisões feitas no corpo, particularmente nos punhos.
Essas práticas quase não sobreviveram aqui no Brasil, por ocasião da reestruturação do culto aos Òrìsà, no entanto há uma prática viva entre nós: o Oro Asa Òsónyìnou Sassanha, como é mais conhecido, um
ritual realizado nas casas de raízes Yorùbá, que significa basicamente: Ritual de proteção de Òsónyìn. Utilizamos o recurso dos “cânticos da folhas” para determinar que as oferendas sejam cobertas de realizações, uma vez que esses cânticos possuem “verbos atuantes” que facilitam a comunicação entre o povo e os Ancestrais Divinizados. No caso de uma Iniciação para Òrìsà ou “Feitura de Santo”, este ritual é realizado para preparar a “esteira”, onde ficará deitado o iniciado e o “banho” para lavar todos os seus objetos rituais, bem como para os seus banhos matinais diários.
Referências Bibliográficas:
– Monteiro, Marcelo dos Santos, 1960 – Curso Teórico e Prático de Folhas Sagradas – Oro Asa
Òsónyìn – Rio de Janeiro – 1999 – 59 p. (Biblioteca Nacional);
– Verger, Pierre Fatumbi – Ewé: o uso das plantas na sociedade ioruba – São Paulo: Companhia
das, Letras, 1995;